Vi: Demolição

Qual seu filme favorito? Sendo uma estudante de roteiro, ouço muito essa pergunta e já tenho uma resposta automática. Mas a verdade é que não gosto de ter que escolher um favorito apenas. Tenho vários filmes, seriados e livros favoritos, acho mentiroso e insatisfatório escolher um só. Mas uma coisa é fato, na lista de favoritos ficam aqueles que resistem ao mais difícil dos testes, o tempo.

Sendo assim, preciso aguardar alguns anos mas tenho impressão de que na quarta passada um novo filme entrou na minha hashtag favoritos. Mais um oferecimento do Sneak Preview da UCLA, o filme Demolição.

Demolição é sobre um corretor da bolsa de valores que leva uma vida fácil e confortável até que sua esposa morre num acidente inesperado. Incapaz de sofrer, ele se dedica à mais banal das atitudes, escrever uma carta para o Atendimento ao Consumidor de uma empresa de vending machines onde seu chocolate ficou preso. Sim, isso mesmo. E o que poderia ser a mais monótona das narrativas vira uma série de cartas brutalmente honestas, sobre as frustrações, as mentiras polidas e as hipocrisias da vida.

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Aos poucos, ele começa a se libertar da letargia em que estava vivendo nos últimos anos. Começa com as cartas, prossegue com ele desmontando as coisas pra ver como elas funcionam por dentro e termina com ele literalmente quebrando tudo.  Quebrando as muralhas que ele construiu dentro de si e finalmente encontrando aquela verdade escondida lá no fundo, que pode ser feia, bonita, estranha ou perigosa, mas que é finalmente, algo real.

Já tá virando clichê falar isso, mas o Jake Gyllenhaal é genial. Genial. Não sei bem como explicar, mas ele se equilibra o tempo todo entre a sutileza e o vigor, entre a arrogância e a vulnerabilidade. Tem um cena que ele ri e chora ao mesmo tempo e você sabe exatamente o porquê, sem palavra alguma. Nesse campo magnético de opostos, ele te deixa enxergar, no momento certo, o que é ser um humano.

É daqueles filmes que o roteiro se sobressai e a voz do autor é muito clara, então assim que a sessão acabou fui pesquisar sobre o roteirista Bryan Sipe. E minutos depois ele estava sentado na minha frente – eu não sabia que ele estaria lá porque eu cheguei atrasada na parte da introdução :) junto com o Judah Lewis, o adolescentezinho do filme que deve ser a pessoa mais cool do planeta.

Brian trabalhou demolindo casas quando tinha uns 20 anos e disse que achava muito interessante como ao destruir as coisas você podia ver como elas tinham sido construídas. Ele se lembrou disso quando estava vivendo uma época muito ruim da sua vida, quebrado, tentando ser roteirista em LA e trabalhando como bartender. Ele disse que se sentia tão deprimido que não ligava mais pra nada, pro trabalho, pros relacionamentos, e nem mesmo pra escrever. O luto que o personagem principal passa, era o luto dele mesmo, da sua morte interna. E de repente ele começou a ouvir a voz do personagem e seguindo essa voz, ele foi encontrando toda a história.

Ele discutiu um pouco também sobre Voice Over, que muita gente acha que é uma tática, uma estratégia pra explicar mais facilmente aquilo que você não consegue mostrar. E muitas vezes é mesmo. No entanto, eu acho que se a escrita é boa, o voice over acrescenta ao invés de diminuir a força da narrativa. Nesse caso, obviamente, funciona. Se você parar pra pensar, é parecido com a sensação que conseguimos nos livros, de estar dentro da cabeça do personagem, seguindo cada pensamento seu. Desses escombros de ideias frustradas e sensações não reveladas, nasce a originalidade que o filme tem de sobra.

Estreia dia 9 de abril nos EUA.

vi: Mais forte que bombas

Já me acostumei a chegar atrasada às sessões da WGA. Saio do estágio uma hora antes, pra atravessar 5,1 milhas de distância em transporte público e não dá tempo. Muito trânsito, ônibus que demora a passar, eu que às vezes entro numas roubadas tentando cortar caminho. Chego bufando, recebo aquele olhar julgador da voluntária idosa que controla a porta, procuro no escuro um assento vazio. Gosto de sentar no meio da sala mas as cadeiras são muito juntas e atravessar uma muralha de joelhos enquanto atrapalho a visão de todos atrás de mim, não me parece válida. Me conformo em sentar numa fileira de lado. Assistir a um pré-lançamento em Beverly Hills, dentro do teatro do Sindicato dos Roteiristas soa muito bem. Mas a verdade é que o glamour sempre encontra um jeito de escapar das nossas vidas, mesmo quando a gente mora na cidade dos sonhos.

Sentei sem saber muito do filme, e o que me deixou curiosíssima, já tinha gente da plateia chorando. Aterrisei no meio de uma cena do Gabriel Byrne, ele é viúvo de uma fotógrafa de guerra famosa. Um amigo avisa que vai escrever um grande artigo sobre ela no New York Times e que pra contar sua história verdadeira, precisa falar sobre a depressão que ela estava sofrendo nos últimos anos, que levou ao seu suicídio. O problema é que o filho mais novo não sabe que a mãe se matou, ele acha que ela  morreu num acidente de carro. Agora o pai tem apenas poucos dias pra abordar esse assunto difícil, sendo que a relação entre os dois é de um silêncio aterrador. Pra fazer uma ponte entre os dois abismos, chega o irmão mais velho, interpretado pelo Jesse Eisenberg.

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A partir daí a trama mergulha fundo dentro de cada personagem, através de flashbacks e sonhos, que revelam os olhares e sentimentos de cada um sobre a mesma mulher. O resultado é um retrato fragmentado de uma mulher complexa, real e cheia de contradições. Como fotógrafa, Isabelle viaja pra países em conflito, arriscando a própria vida pra reportar ao mundo, as coisas que ela vê. A fatalidade iminente de seu trabalho não a assusta, mas a vicia, o que pode ser ainda mais perigoso. Quando volta pra casa, morrendo de saudades dos filhos, não consegue lidar com o vazio da vida de dona de casa, dona de uma casa onde os homens aparentemente aprenderam a viver sem ela. O que ela parece não enxergar é que o espaço ocupado por ela era imenso, ultrapassava cuecas lavadas, jantares caseiros ou qualquer outra tarefa doméstica que ela não cumpria. Seu espaço não era à direita ou esquerda, em cima ou embaixo, era pervasivo.

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Ela é interpretada pela francesa Isabelle Rupert. Que é foda. A facilidade com que ela transita por todos os ângulos que a personagem exige é fascinante. Você sente que está diante de um ser humano real, com falhas, dúvidas, questionamentos, inseguranças, contradições, que em nenhum momento recebe um julgamento moral. E é fascinante porque você não sabe o que pode acontecer, qual segredo pode estar ainda escondido ali. Acho que quando se fala da falta de bons papeis femininos no cinema, é fácil (facílimo) apontar os erros. Mas esse filme é um dos raros exemplo de um caminho a seguir, com uma personagem madura e independente, que desperta amor, ressentimentos e perguntas.

Estreia no Brasil dia 7 de abril.

vi: Memórias Secretas

Daqueles filmes que te dá um soco na cara e um chute no saco. Se você tiver um, claro. Mas você não está esperando o golpe porque a história começa com dois velhinhos de mais de 90 anos, num asilo, planejando uma viagem. Max está numa cadeira de rodas e tem problemas respiratórios. Zev está bem fisicamente, mas tem demência e frequentemente fica confuso, sem saber aonde está.

Assim, Zev parte pra sua peregrinação sozinho, munido apenas de uma carta cheia de instruções detalhadas escritas por Max. A missão é matar o capitão nazista que no passado assassinou a família dos dois, quando eles estavam presos no mesmo campo de concentração. Max tem pesquisado e descobriu que o capitão imigrou para os Estados Unidos se disfarçando de judeu. Lá se vão 70 anos e os dois são os únicos sobreviventes ainda capazes de reconhecê-lo.

São quatro endereços pra checar, quatro histórias de vida, quatro maneiras diferentes de encarar o mesmo assunto. É o tipo de filme que te engana, vai te levando de mansinho. Aos poucos se revela sombrio, assustador, severo, mas o carisma e a fragilidade do personagem principal te carregam, a curiosidade pelo desfecho te faz refém. Quando você vê que o fim é um precipício você já não consegue voltar. A luz do cinema acende e você ainda não se conformou com o que acabou de ver. Não posso contar o final! Mas na verdade achei que ele é positivo. Mostra que mesmo os maiores monstros podem mudar e se arrepender verdadeiramente.

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A palestra em seguida teve o Martin Landau, ator de 87 anos que interpreta o Max. Diz ele que usou maquiagem pra ficar mais velho. Mas não muita (querido). A pessoa tem quase 60 anos de carreira então claro que ele falou muitas coisas relevantes. O que mais me tocou foi quando ele falou sobre o personagem dele. Perguntaram se ele achava válido alguém ter como objetivo de vida uma vingança por algo que aconteceu há 70 anos.

Ele respondeu que o personagem dele vive por um sentimento que não pode ser racionalizado. Porque os sentimentos não têm nome. O roteirista pode escrever “ele anda de um lado pro outro, ansioso” ou “ele tem medo nos olhos”, mas os sentimentos não tem nome, nós é que tentamos dar nome a eles. E ele, como ator, tenta achar o sentimento do personagem e deixa aquele sentimento viver dentro dele. “Se você quando  jovem vê sua esposa e seus filhos serem abusados, humilhados e assassinados por militares inconsequentes, isso fica dentro de você. Isso não vai embora. Você fica em dívida com essas pessoas e eu não gosto de dívidas, nem financeiras e nem emocionais.

Aquele momento que você quer levantar da cadeira e bater palmas pausadas até todo o resto da plateia levantar também e as palmas se sincronizarem e depois explodirem numa algazarra sem controle.

Fiquei meio chocada com o que ele falou e confesso que provavelmente não entendi por completo o que ele quis dizer. Fiquei me perguntando, como roteirista/escritora o quanto isso me afeta. É uma presunção mesmo a gente achar que pode enclausurar um sentimento num adjetivo. Os sentimentos não são palavras. Por outro lado sinto um certo alívio, pensando em todas as vezes que tentei escrever sobre o que estava sentindo mas não consegui traduzir em palavras. Achava que me faltava capacidade pra escrever exatamente o que eu queria, mas talvez eu estivesse tentando uma tarefa impossível. Acho que por isso que eu gosto tanto de metáforas e de sinestesia, pra tentar colocar na equação, além dos adjetivos, a textura, o cheiro, a dimensão, a cor, o ritmo, o peso dos sentimentos.

É. Temos ainda muito o que aprender.

vi: Ave, César

Estou fazendo a aula mais legal do mundo. Três meses assistindo toda semana um filme que ainda não foi lançado. Em seguida tem uma discussão moderada pelo crítico Pete Hammond e alguém ligado ao filme, um ator, diretor, produtor, etc. Tem sido muito bacana, então resolvi fazer essa catiguria das coisas que eu vi. Na quarta, vi “Hail, Cesar” (ou “Ave, César”), mais novo longa dos irmãos Coen. Na sequência, o ator principal Josh Brolin, apareceu pra falar sobre o filme. Essa foi a melhor parte, na real.

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O filme acompanha o trabalho de Eddie Mannick, o “fixer” de um grande estúdio de cinema nos anos 1950. Ter essa função significa lidar com todos os pepinos que surgem durante as filmagens, especialmente os problemas causados pelas estrelas do estúdio. Entre elas, o grande galã, que é sequestrado por um grupo de roteiristas comunistas.

A narrativa episódica parece muitas vezes perder seu foco, se preocupando mais em prestar uma grande homenagem aos tipos excêntricos do cinema hollywoodiano do que mais exatamente em contar uma história. Mas a metáfora religiosa é interessante. O dono do estúdio é um Deus, onipotente, onipresente e invisível. Eddie é seu discípulo, seu “filho”,  uma espécie de Jesus dos bastidores, destinado a carregar nas costas todo o peso da humanidade e pagar sozinho, os erros cometidos por terceiros.

Tem vários atores famosos, George Clooney, Channing Tatum (ele tem uma cena de musical bem divertida), Scarlett Johansson com uma voz maluca, Tilda Swinton em dois papéis. Frances McDorman e Jonah Hill, cada um apenas com uma cena. Mas pra falar a verdade, o melhor personagem é feito por um ator desconhecido, um tal de Alden Ehrenreich. Ele faz um herói de Western que pela primeira vez foi escalado para um papel dramático. Ele mal tem sutileza pra abrir uma porta, ao atravessar o salão parece ter esquecido como se anda e na hora de dar uma simples fala, seu sotaque de cowboy é tão forte que é impossível entendê-lo. Ralph Fiennes faz o diretor da cena e a discussão entre os dois, cheia de panos quentes, é de um humor quase ingênuo, no melhor estilo Chaves ou Didi Mocó.   

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Melhor cena do filme, Mr. Lawrence.

O filme acabou. Surge Josh Brolin. Já imaginava que ele seria um homem meio esquisito. Um rosto gigante, mullets crescidos, corpo robusto, pernas curtas pra uma pessoa alta. Mas com aquela alma carinhosa de entertainer tão comum nos grandes atores e também nos tios que comandam as churrasqueiras aos domingos. Sempre se referindo diretamente à plateia, fazia piadinhas e imitações. Ele falou bastante da sua estranha relação com os irmãos Coen, cheia de silêncios desconfortáveis e perguntas sem respostas. Eles não são do tipo que pegam o ator pela mão e o guiam. Josh perguntava sobre determinados traços do personagem e ouvia um vago “aw…não sei” como resposta. Perguntava sobre a pessoa real na qual seu personagem foi inspirado e ouvia um “é, parece que tem um livro sobre ele, mas eu não lembro o nome…” Então ele sentia que precisava realmente trabalhar pelo papel, fazer suas próprias pesquisas e de uma certa forma, merecer seu pagamento.

A excentricidade dos Coen vem desde No Country for Old Men. Numa madrugada, Josh conta que esperava pra filmar sua cena, sentado no deserto, ao lado de um dos irmãos. Coen quebrou o silêncio com um suspiro alto. Josh perguntou o que ele tinha, pra logo se arrepender com a resposta: “Ninguém vai assistir a esse filme.” Depois ele levantou e foi dar uma volta, deixando Josh sozinho com suas inseguranças. Mas o ator diz que no fundo, os filmes dos irmãos Coen não seriam o que são, se eles não fossem desse jeito. Uma vez outro diretor perguntou para Josh qual seria a melhor maneira de eles se comunicarem. Ao que ele respondeu: “A melhor maneira é você se preocupar mais em fazer um bom filme do que em construir uma relação comigo. Porque se você estiver fazendo um bom filme, eu vou te seguir.”  E deve ser exatamente o que os irmãos Coen fazem. São três filmes juntos e 10 anos de relacionamento durante os quais Josh conseguiu arrancar deles apenas um elogio direto: Josh tem a capacidade de ver o filme como um todo, e não apenas focar em seu próprio personagem.

Josh Brolin tadinho, tentando ser amigo dos Coen.

Outra historinha bacana que ele contou foi que terminou de filmar No Country for Old Men numa terça e na quinta estava começando American Gangster. Ainda relativamente anônimo, Josh chegou ao set uma pilha de nervos. Não tivera tempo pra conhecer a equipe, sua primeira cena era com Russel Crowe e diferente do que tinha prometido ao diretor Ridley Scott, ele não conseguira emagrecer para o papel. Seu terno estava apertado. Ele tremia de nervoso e pra disfarçar pediu pra improvisar um pouco os movimentos. Quando sentou na cadeira, sua calça rasgou. Envergonhado, terminou a cena e correu pro seu trailer, certo de que seria demitido. Passaram alguns minutos e Ridley Scott bateu em sua porta. Ele elogiou a vulnerabilidade com que Josh interpretou o papel, pois era algo que ele não tinha imaginado. Ele achou genial e pediu pra continuar nessa direção. E Josh manteve a compostura: “Sim, sim, eu sei, claro.”

:)

Estreia no Brasil em MARÇO! VIRZE.